domingo, abril 09, 2017

LESADOS DO NOVO BANCO

André Verissimo escreveu um interessante artigo no Negócios.
Resolvi responder-lhe nestes termos:

"Estimado André Veríssimo

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Distinto Subdiretor do Negócios


Leio muito atentamente o que escreve, normalmente sem comentários e com um prudente silêncio, como é próprio de que defende interesses de terceiros.
Não posso, porém, deixar de comentar o que escreveu na edição de 7 de abril, sob o título de “Lesados do Novo Banco”, talvez porque isso me diz respeito a mim próprio, como contribuinte.
Parece que todo este País está com Alzheimar e que os jornalistas estão especialmente afetados.
Já ninguém se lembra da medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal ao Banco Espírito Santo.
Foi constituído um banco de transição denominado Novo Banco – e “banco bom” – onde foi colocado o filet mignon do BES, ficando os ativos tóxicos no próprio BES, denominado “banco mau”.
Quando comunicou a medida de resolução, o Banco de Portugal anunciou que  o Novo Banco, SA, é um banco constituído nos termos do nº 3 do artigo 145-G do Regime Geral das Instituições de Credito e Sociedades Financeiras”.
O artº 145º-G, nº 1 determinava, à data da resolução que o Banco de Portugal pode determinar a transferência, parcial ou total, de ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão de uma instituição de crédito para um ou mais bancos de transição para o efeito constituídos, com o objetivo de permitir a sua posterior alienação a outra instituição autorizada a desenvolver a atividade em causa.”
De forma clara e inequívoca, em cumprimento dessa determinação legal, o Banco de Portugal escreveu o seguinte, nos estatutos do Novo Banco:
“Artº 4º,1:  O Novo Banco, SA, tem por objeto a administração dos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão transferidos do Banco Espirito Santo, SA, para o Novo Banco, SA, e o desenvolvimento das atividades transferidas, tendo em vista as finalidades enunciadas no artigo 145º-A do RGICSF, e com o objetivo de permitir uma posterior alienação dos referidos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão para outra ou outras instituições de crédito.”
Não se conhece nenhuma deliberação do Banco de Portugal que tenha determinado a alteração do estatutos do Novo Banco, parecendo-nos indiscutível que o Fundo de Resolução, como acionista único do banco de transição, não o podia fazer, na medida em que isso implicava uma derrogação da medida de resolução.
A verdade é que consta do registo comercial do Novo Banco que foi alterado esse artº 4º dos estatutos, por iniciativa do acionista único, o que se reputa inaceitável, por ser gravemente lesivo dos interesses dos acionistas e dos demais investidores do BES.
A resolução bancária não pode ser um assalto ou um confisco. E por isso se afigura absolutamente inadmissível a doação não só do espólio do assalto como, também, do capital de giro alocado pelo Estado.
No dia 4 de agosto de 2014, a Comissão Europeia emitiu um comunicado em que afirmava o seguinte:
O Banco Espírito Santo S.A. é o terceiro maior grupo bancário português, com 80,2 mil milhões de euros de ativos, 36,7 mil milhões de euros em depósitos de clientes e 5,8 mil milhões de euros em recursos de outras instituições de crédito, segundo dados de 30 de junho de 2014. Estando presente em quatro continentes e em 25 países e empregando quase 10 000 pessoas, o grupo do Banco Espírito Santo é atualmente o segundo maior grupo bancário privado português em termos do total dos ativos líquidos reportados.
O Banco Espírito Santo S.A. é um banco universal constituído e domiciliado na República Portuguesa. O Banco Espírito Santo S.A. serve todos os segmentos de clientes: retalho, empresas e clientes institucionais, oferecendo uma vasta gama de produtos e de serviços financeiros através de uma rede diversificada.”
E logo a seguir:
As regras comuns da UE em matéria de auxílios estatais a favor dos bancos no contexto da crise financeira incentivam a saída dos operadores inviáveis, permitindo ao mesmo tempo que o processo de saída se realize de forma ordenada, a fim de preservar a estabilidade financeira. Além disso, as regras devem garantir que o auxílio se limita ao mínimo necessário e que as distorções da concorrência causadas pelos subsídios, que dão aos bancos beneficiários uma vantagem em relação aos seus concorrentes, são atenuadas.”
Ficou a saber-se que a Comissão Europeia havia autorizado uma ajuda de Estado de 3.900 milhões de euros, por ter considerado que o Banco Espírito Santo era um “operador inviável”.
Toda a gente - a começar pelos acionistas e pelos demais investidores – acreditou no que foi anunciado e que, no essencial, foi que aquele filet mignon do negócio bancário do BES seria vendido a outra ou outras instituições de crédito, autorizadas a desenvolver a sua atividade no espaço da União Europeia.
Era isso que decorria, de forma expressa e clara, do artº 145º-G, nº 1 do RGICSF.
É preciso que se entenda de vez que o Novo Banco, enquanto banco de transição não é nem nunca foi dono dos ativos, passivos e elementos extrapatrimonais que para ele foram transferidos “com o objetivo de permitir a sua posterior alienação a outra instituição autorizada a desenvolver a atividade em causa”.
O Novo Banco nunca pagou nada como contrapartida de tal transferência e a lei não permitia ao Banco de Portugal proceder a uma alienação de bens alheios.
O Novo Banco, enquanto banco de transição, não é mais do que um veiculo de concentração dos ativos não tóxicos do BES para proceder à sua posterior alienação a outra instituição.
A tentativa de vender o Novo Banco com ativos que não são seus é mais do que ilegal. É uma verdadeira vigarice, naquele sentido que a palavra tem no conto de Fernando Pessoa.
Não se falsificaram notas de 100 mil reis mas falsificaram-se os estatutos do Novo Banco, mudando-lhe o objeto social, sendo que isso não podia ser feito, por contradizer a medida de resolução, tal como ela foi configurada pelo Banco de Portugal.
A trapalhada que estamos a viver é gravíssima, porque afirma uma dimensão totalitária da política e uma vocação de destruição do direito.
Alguém acredita que se dá um banco desta dimensão sem contrapartidas?
Eu – digo claramente – que não acredito. E fico chocado quando na base de pressupostos idênticos mas por muito menos dinheiro vejo crucificados outros dirigentes políticos e gestores de grandes empresas.
Aqui não estão em causa nem 15, nem 20, nem 30 milhões de euros. Estão em causa 82.000 milhões de ativos e 36.000 milhões de depósitos e 5.800 milhões de recursos em outras instituições financeiras.
Ora, os prejuízos que motivaram a resolução foram de apenas 3.577 milhões de euros e tinham como contrapartida um capital de mais de 6.000 milhões.
Mesmo considerando que a lei, no que toca à liquidação tem um sentido manifestamente usurário e perverso, não havia razão para que os acionistas e os demais investidores reagissem à medida de resolução, tal como ela foi anunciada.
Não se acreditava que os responsáveis do Banco de Portugal fossem tão imprudentes que destruíssem, com má gestão, o capital do Novo Banco. E, por isso, não se afigurava chocante, atenta a enorme margem de manobra, que o Fundo de Resolução se reembolsasse a si próprio com os montantes recebidos da alienação dos ativos recebidos do BES.
E isso porque, afinal, seria ele próprio liquidado, revertendo o valor da liquidação para a massa insolvente do BES, de onde sairão os valores que hão-de servir para indemnizar investidores e, em último grau, os próprios acionistas.
Na mesma edição do dia 7 de abril, anuncia o Negócios que os bancos devem “vir a intervir na gestão de ativos problemáticos do BES”. É uma nova achega, que tampouco se entende, pela simples razão de que o Novo Banco não é um banco e não pode ser tratado como tal, para além de que não faz sentido tratar de ativos problemáticos, pois que todos esses ficaram no BES, como foi reconhecido pelo Banco de Portugal.
Compreendemos as boas intenções das esquerdas, no que se refere à nacionalização. Já escrevi sobre essa matéria em janeiro último.
A nacionalização não é admissível – a menos que se alterasse a lei – Lei nº 62-A/2008 de 11 de novembro, pois que, sendo a totalidade do capital detida por uma pessoa coletiva de direito público,  não há no Novo Banco “participações sociais de pessoas coletivas privadas” e só essas podem ser nacionalizadas.
O negócio da venda ou doação  das ações do Novo Banco a um fundo abutre americano é, por enquanto o que, com toda a propriedade, se chama um “negócio escuro”, pois que se não conhece o seu conteúdo.
Qualquer alvitre sobre o mesmo é inadmissível, razão pela qual já pedimos as devidas certidões para, se for o caso, o impugnar nos tribunais.
Uma coisa é aceitar, como aceitaram todos os investidores, que o tal filet mignon do BES fosse entregue a um banco de transição, a quem a lei impõe especiais obrigações no que toca à preservação dos valores e à prudência na gestão.
Outra coisa é “vender” ou “doar” o capital desse administrador de bens alheios e permitir-lhe que o mesmo passe a administrar em nome próprio o que não comprou nem lhe pode ser doado.
Não sei onde é que viu que “a venda do Novo Banco” pressupõe uma injeção de 1.500 milhões de euros em capital, sendo 1.000 milhões pelo fundo e 500 mil por troca de obrigações.
Tanto quanto sei, a Lone Star não está disposta a comprar nada.
Mesmo que tenha sucesso a ameaça feita aos obrigacionistas para que reduzam o valor a receber em 500 milhões, isso não corresponderá nem a uma compra nem a um participação em aumento de capital.
E se as ações forem entregues ao Lone Star sem nenhum pagamento também não haverá compra de nada. Haverá sim empobrecimento do país, na medida em que aliena ativos sem nada receber, criando um buraco enorme na balança de capitais, pois que aliena a um fundo americano títulos com um valor nominal de 3.675  milhões em nenhuma contrapartida.
Fala-se de um aumento de capital de 1.000 milhões de euros.
Se isso acontecesse e ser o Fundo de Resolução ficasse com 25% do capital teríamos o Lone Star com ações representativas de 4.425 milhões de euros e o Fundo de Resolução com ações representativas de 1.475 milhões de euros.
O Fundo de Resolução perderia 3.425 milhões de euros, o que é absolutamente inaceitável.
Mas mais do que isso perderiam os Lesados do Novo Banco, que acreditaram nos sucessivos governos e no conteúdo das leis e estão agora ameaçados de  tudo perderem, graças a uma vigarice muito mais grave que a do Manuel Peres Vigário do poeta.
A falsificação não é de notas de 100 mil reis.
É dos estatutos do Novo Banco e consiste em pretender, por essa via, alterar a medida de resolução, de forma a que o banco de transição se possa apropriar do património do BES bom.
            Desculpe o tempo e o espaço que lhe ocupei

            Os meus melhores cumprimentos

Miguel Reis